domingo, 30 de janeiro de 2011

O Poder de Polícia e a Fiscalização Municipal

Poder de Polícia – Dever de Polícia
O poder de polícia é uma expressão cujo significado está sujeito aos contornos políticos e sociais de um momento histórico. Deriva do antigo conceito de "boa ordem da sociedade", imposta pelo Estado Império, passando ao "Estado de Polícia", no período de influência da nacional socialista alemã (que perdurou até a década de cinqüenta no Brasil, e com reflexos durante o regime militar), recrudesce o "poder" no auge do liberalismo, ao tempo do Estado liberal, e sofre transformações de conceitos no período do Estado intervencionista, estendendo suas ações ao controle da ordem econômica e social.

O poder de polícia, deste modo, não se limitaria mais a assegurar a ordem pública, na visão de uma polícia de segurança, mas estenderia suas ações a limitar ou disciplinar direitos individuais, ajustando-os ao interesse e ao bem-estar público.

Hoje, poderíamos dizer que o poder de polícia está, necessária e obrigatoriamente, atrelado às normas constitucionais. O Estado é obrigado a agir "com o objetivo de adequar o exercício dos direitos individuais ao bem-estar geral" (Maria Sylvia Zanella di Pietro). Diríamos, então, que a antiga expressão "poder de polícia" passa a ser, nos tempos modernos, um "dever de polícia", uma obrigação jurídica e administrativa de cuidar do interesse público, consoante os vetores constitucionais instituídos.

Certo, porém, que as intervenções do Poder Público estão restritas ao princípio da legalidade, restringindo suas ações aos limites da lei, sem agredir os direitos de cidadania e da dignidade da pessoa humana. "As limitações à liberdade e à propriedade somente irão se justificar se e na medida em que os direitos coletivos e difusos (...) postulem" (Lúcia Valle Figueiredo).

Tendo o Estado o dever de agir em defesa do bem-estar da população, a sua omissão, ineficiência e despreparo administrativo no cumprimento de suas obrigações, provocam, incontinenti, um dano a ser reparado. Não se trata de um poder facultativo e, sim, de um dever a cumprir. Cabe ao Estado responder nas esferas civil, penal e administrativa, por sua omissão e ineficiência ao permitir o que não seria permitido, ao tolerar o intolerável.

Aliás, podemos incluir neste sentido, o princípio da responsabilidade civil objetiva do Estado perante terceiros, em face dos danos que seus agentes lhes causarem, nos termos do art. 37, § 6º da Lei Maior. O dano provocado por
negligência também é objeto de reparação, se demonstrado o nexo entre a omissão e a sua conseqüência.

Polícia Administrativa – Polícia Judiciária

Existe uma distinção clara entre o poder de polícia administrativa, ora tratada, e o poder de polícia judiciária. O primeiro tem um caráter essencialmente preventivo, ou até mesmo educativo, enquanto o segundo age de forma repressiva. O primeiro procura impedir as ações anti-sociais, e o segundo a punir os infratores da lei penal, como diz Maria Sylvia Zanella di Pietro.

Isso não quer dizer que o poder de polícia administrativa não pode punir o infrator, como interditar um estabelecimento ou embargar uma obra, ou mesmo apreender uma mercadoria deteriorada, mas as punições são provocadas em razão de atos ilícitos administrativos, atos que afrontam a legislação administrativa. Quando, porém, a ação ilícita for de natureza penal, a competência de agir pertence à polícia judiciária.

Evidente, porém, que há situações em que o ilícito pode afrontar tanto a legislação administrativa quanto penal, quando, então, a ação deflagrada, se não for conjunta, deve ter os seus resultados comunicados ao outro poder policial, para que este cumpra a sua missão.

Não compete, assim, aos Agentes Fiscais de Poder de Polícia Administrativa intervir em ações ilícitas de natureza exclusivamente penal, como, por exemplo, apreender mercadorias contrabandeadas, roubadas ou falsificadas. Tais ações são pertinentes aos policiais judiciários, a Polícia Militar ou Civil. O máximo que se permite é uma ação desencadeada em conjunto, mas, mesmo assim, o auto de apreensão e o boletim de ocorrência são documentos lavrados pela polícia judiciária. Do mesmo modo, não cabe aos policiais judiciários ações puramente afetas aos agentes fiscais administrativos, como exigir a apresentação de alvará dos estabelecimentos, ou exigir prova de pagamento de tributos. Tais exigências são ilegais e arbitrárias, a não ser que façam parte de um processo penal em curso.

Atribuições Municipais
A Constituição Federal adotou o sistema de competências reservadas ou enumeradas para os Municípios. Tais competências estão implícitas ou explícitas na Carta.

A primeira competência municipal enumerada na Constituição Federal (art. 30, I) é a de legislar sobre assuntos de interesse local. Segundo as lições de Hely Lopes Meirelles, o interesse local se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União, o que se consubstancia através da competência legislativa exclusiva. Um exemplo seria o trânsito, conforme estabelece o Código Nacional de Trânsito, pelo qual competem aos Municípios os serviços locais, tipo, estacionamento, circulação, sinalização etc. Outro exemplo seria o Código Nacional de Saúde Pública, que prevê a instituição do Regulamento Sanitário Municipal.

Ao definir-se "interesse local" sob o primado da predominância do interesse local, não resta dúvida que a competência dos Municípios se destaca sobre os demais entes políticos, levando em conta o fato de que é no Município que se vive, que se trabalha, onde participamos como membros de uma coletividade. Em nosso vasto Brasil, somos partes de uma cultura local, regional, voltada às peculiaridades de um lugar específico, do nosso meio, da nossa cidade, do nosso Município.

Neste teor, compete ao Município prover a tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse e ao bem-estar de sua população, notadamente:
I – planejar o uso e a ocupação do solo;
II – estabelecer normas de construção, de loteamento, de arruamento e de zoneamento urbano;
III – regular o funcionamento de estabelecimentos comerciais, obedecendo às limitações urbanísticas convenientes à ordenação do seu território;
IV – regular a utilização dos logradouros públicos;
V – regular o trânsito, o transporte público, determinando, inclusive, os itinerários e pontos de estacionamento e de paradas dos transportes coletivos;
VI – disciplinar os serviços de carga e descarga de mercadorias e controlar a capacidade de peso dos veículos que circulam na área pública municipal;
VII – sinalizar as vias urbanas e as estradas municipais;
VIII – regular o depósito de lixo domiciliar e industrial, fixando normas de coleta e transporte, inclusive dos resíduos nocivos à saúde;
IX – ordenar as atividades urbanas, fixando condições e horários de funcionamento;
X – regular os serviços funerários e de cemitérios;
XI – regular o uso de propagandas, cartazes e anúncios;
XII – regular o comércio e depósito de animais, inclusive a circulação destes nas vias públicas;
XIII – regular os serviços de mercados públicos, feiras e abatedouros;
XIV – controlar o uso e o comércio de produtos comestíveis e de higiene;
XV – regular o uso e o comércio de produtos perigosos ou nocivos à saúde;
XVI – regular a proteção do meio ambiente e o controle da poluição em geral;
XVII – regular a proteção das florestas e a conservação da natureza;
XVIII – regular a proteção das praias, rios e lagos;
XIX – regular os meios de proteção e de defesa da saúde pública.

Essas e outras atividades de competência municipal estão intimamente vinculadas ao poder de polícia do Município, ou apoiadas por legislação exclusivamente municipal ou suplementar à legislação federal ou estadual. Tanto exclusiva como suplementar, ou complementar, o Município deve necessariamente instituir suas leis e regulamentos, permitindo aos seus agentes fiscais o exercício legal de suas funções. Em outras palavras, sem dispositivo legal do próprio Município, torna-se inválida a atuação de seus agentes, mesmo que exista norma legal emanada de outro ente político, a não ser que haja delegação expressa em convênio a permitir o exercício da função.

A Fiscalização Municipal
Os Municípios, em geral, possuem quadros de funções específicas na fiscalização do poder de polícia. São quadros de atuação nas áreas:
I – Fiscalização de Posturas Municipais;
II – Fiscalização de Obras de Construção Civil e outras;
III – Fiscalização Sanitária;
IV – Fiscalização de Meio Ambiente;
V – Fiscalização de Transporte.

A chamada Fiscalização de Posturas Municipais abrange, entre outras funções:
I – Autorização e funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais etc.;
II – Uso dos logradouros públicos;
III – Autorização e controle de propagandas, placas e anúncios nas áreas públicas e frontais aos imóveis;
IV – Controle dos mercados públicos, feiras e abatedouros;
V – Autorização e funcionamento de eventos, shows, parques de diversões, circos etc.
"Posturas Municipais" é expressão antiga, já aplicada no período colonial como um conjunto de normas locais que deveriam ser obedecidas por todos os seus moradores. Agrupava um elenco variado de dispositivos, desde regras básicas de civilidade, relações trabalhistas e até os procedimentos que deveriam adotar na construção de suas casas. Para facilitar o manuseio e a sua leitura, as normas foram aos poucos se consolidando no formato de um código único, dividido por assuntos.

Interessante lembrar que na Constituição Imperial de 1824, havia o dispositivo que dava competência às Câmaras de Vereadores para "formação de suas posturas policiais", conjugando normas de posturas ao poder de polícia.

Com o surgimento de leis sobre matérias específicas, o Código de Posturas sofreu um esvaziamento em sua abrangência original, limitando-se a alguns aspectos da disciplina administrativa municipal. Os próprios Municípios resolveram distribuir suas normas jurídicas por assuntos, criando o Código de Obras, o Código de Zoneamento Urbanístico, o Código de Saúde Pública e outros códigos ou leis, cada um tratando de sua matéria. Em conclusão, o Código de Posturas perdeu a magnitude da importância de outrora, restringindo-se, praticamente, a regular o uso dos espaços públicos, o funcionamento de estabelecimentos, a higiene e o sossego público.

Há, entretanto, uma forte corrente de administradores que pretende reativar a consolidação das normas municipais de poder de polícia no Código de Posturas. Um dos motivos é a atual dispersão de leis, às vezes até conflitantes entre si.

Um dos exemplos é a proliferação de licenças de funcionamento de estabelecimentos comerciais. Um estabelecimento para funcionar, e dependendo de sua atividade, precisa obter de um mesmo Município, o Alvará de Funcionamento, o Alvará (ou Assentamento) da Vigilância Sanitária, a Licença da Fiscalização do Meio Ambiente. E se a atividade for transporte coletivo, adiciona-se a Licença da Fiscalização de Transportes.

Ao lembrarmos que o Alvará é uma licença que gera direitos ao seu possuidor, temos, no caso, uma séria contradição. Afinal, se o Município liberou o Alvará de Funcionamento, a ausência do Alvará de Vigilância Sanitária, por exemplo, poderia provocar a interdição do estabelecimento? E vice-versa?

O que ocorre, na verdade, é a intolerável briga interna de poderes, motivada pela veleidade dos que administram os seus nichos de poder. Julgam esses administradores que a sua autoridade está acima do interesse público, e quanto mais exigências criam, mais poderosos ficam, politicamente.

Do outro lado está o público, sofrendo os dissabores de uma burocracia inconseqüente.
A consolidação das atribuições de poder de polícia no Código de Posturas seria um passo importante da Administração Pública Municipal, facilitando a compreensão dos regulamentos e simplificando o seu conteúdo. Ao mesmo tempo, o quadro de fiscalização municipal de poder de polícia deveria, no mínimo, atuar em conjunto, agrupado em um mesmo setor e sob direção única.

Salvo raras e excelentes exceções, a estrutura administrativa de uma Prefeitura sofre de profundas distorções operacionais. São exemplos das contradições existentes:
I) Vigilância Sanitária nada tem a ver com a Secretaria de Saúde, onde, geralmente, está lotada;
II) Alvará de Funcionamento nada tem a ver com a Secretaria de Finanças, onde, geralmente, é liberado;
III) Fiscal de Obras nada tem a ver com a Secretaria de Obras Públicas, ou Secretaria de Urbanismo, onde, geralmente, está lotado;
IV) Fiscal de Posturas nada tem a ver com a Secretaria de Finanças, onde, geralmente, está lotado.

O melhor caminho seria a criação de uma Secretaria de Fiscalização de Poder de Polícia, onde todos os Fiscais Municipais, exceto os tributários, que não são agentes de poder de polícia, seriam agrupados, trabalhando dentro de um plano unificado de ações.

Com isso, ganharia a população, já sabendo onde procurar e encaminhar suas reivindicações. 

Os processos correriam mais facilmente e as decisões seriam tomadas sob uma mesma base legal e sempre pelo critério da impessoalidade.
Outras distorções que normalmente ocorrem são:
I – Fiscais de poder de polícia fiscalizando tributos (principalmente as taxas);
II – Fiscais de poder de polícia reprimindo vendedores ambulantes não autorizados;
III – Fiscais de poder de polícia interditando estabelecimentos por fato da pagamento de tributos;
IV – Fiscais de poder de polícia reprimindo arruaças, vandalismos, invasões e ocupações indevidas de prédios públicos e privados.

Sobre os fatos acima, devemos lembrar:
A) Agente Fiscal não é, e nem foi preparado, para atuar como policial. O concurso público para admissão de um Agente Fiscal é calcado nos conhecimentos jurídicos e técnicas de fiscalização. Ao contrário do policial, não se exige do Agente Fiscal capacidade e adestramento físico e militar.
B) A repressão aos ambulantes não cadastrados e ao transporte não permitido, o ordenamento de passeatas, desfiles e shows nas áreas públicas são atividades pertinentes a guarda municipal (em proteção ao patrimônio público) e aos policiais militares.
C) O controle de trânsito nas vias públicas é de competência da Guarda Municipal, ou da Polícia Militar, e não de agentes fiscais de posturas.
D) Lançar e cobrar tributos são competências das autoridades fazendárias. A fiscalização e cobrança de tributos competem aos Agentes Fiscais Fazendários ou Tributários, inclusive as taxas.
E) Alvará de Funcionamento não é taxa; é uma licença a ser concedida pelo órgão responsável de poder de polícia. O Alvará, portanto, não é de alçada fazendária, mas as taxas decorrentes do poder de polícia, estas sim, devem ser lançadas, cobradas e fiscalizadas pelos Fiscais de Tributos.

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